Com o programa Tarifa Zero, a prefeitura de São Paulo deve deixar de arrecadar quase R$ 300 milhões em um ano, montante superior ao orçamento anual de algumas secretarias ou aos recursos destinados à urbanização de favelas no município. O programa, que prevê subsídio de 100% na tarifa de ônibus aos domingos, aumentou o número de passageiros e o movimento nos parques nos dias em que a gratuidade está em vigor. Não está claro, contudo, se tem capacidade de estimular a economia aos domingos, afirmam especialistas.
Exercício da LCA Consultores feito para o Valor mostra que, em um ano (de dezembro de 2023, quando começou, a dezembro deste ano), a renúncia de receita por conta do programa pode chegar a R$ 293 milhões.
Com a implementação do programa, a média de passageiros transportados aos domingos cresceu 38,8%, calcula Bruno Imaizumi, economista da LCA, com base em dados disponibilizados pela SPTrans, a empresa municipal que gere o transporte por ônibus na cidade.
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Desde 17 de dezembro de 2023 até 3 de novembro, foram transportados no complete 133,1 milhões de passageiros aos domingos, o que significa uma média de 2,8 milhões por dia, ante 2 milhões antes do Tarifa Zero.
A alta é expressiva quando comparada aos dias de tarifa cheia, como os sábados. Entre o sábado de 16 de dezembro e o de 2 de novembro, foram transportados 180 milhões de passageiros, uma média de 3,9 milhões por sábado, 0,17% a mais que a média pré-programa. O estudo, que contabiliza 60 domingos e um feriado, analisa o perfil de passageiros que pagam a tarifa integral e aqueles que pagam meia.
O Tarifa Zero está em fase de testes e foi lançado em dezembro como piloto com previsão de durar um ano. O objetivo do programa, segundo o prefeito Ricardo Nunes, é permitir que moradores aproveitem a cidade e espaços públicos, como parques.
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Em nota, a SPTrans afirma que o Tarifa Zero ampliou “o acesso ao transporte público e a equipamentos de lazer como parques, centros esportivos e eventos culturais, especialmente das pessoas mais vulneráveis”.
“As dez linhas mais utilizadas aos domingos ficam na periferia, confirmando a relevância social da medida, que também tem sua contribuição para a economia native”, diz o texto.
Antes do programa, a prefeitura já subsidiava parte da tarifa de ônibus da capital, inclusive aos domingos. A tarifa atualmente é de R$ 4,40. Sem o subsídio, afirmou Nunes recentemente, a tarifa estaria em R$ 11,20, de acordo com a prefeitura.
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Reeleito neste ano, Nunes disse que pretende manter o Tarifa Zero e implementar o programa Mamãe Tarifa Zero, para que mães inscritas no CadÚnico possam levar e buscar filhos nas creches municipais sem ter de pagar pela passagem de ônibus.
“A cada escolha, uma renúncia. Esses quase R$ 300 milhões correspondem a 0,2% do orçamento anual da cidade”, afirma Imaizumi, responsável pelo levantamento. “A questão fiscal preocupa também na esfera municipal. Por isso, ainda que seja um número relativamente baixo [diante de todo o orçamento], seria bom entender melhor os benefícios desse programa.”
Para onde vão os recursos
Ursula Peres, professora de gestão de políticas públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (USP), afirma que a cifra de R$ 297 milhões não é desprezível e diz que é preciso entender quem está sendo beneficiado.
“O orçamento de São Paulo é muito volumoso, da ordem de R$ 110 bilhões, e a receita corrente, de cerca de R$ 90 bilhões. Então esse valor [referente ao Tarifa Zero] corresponde a 0,33% da receita. Pode não parecer um valor significativo, mas, quando olhamos o que São Paulo tem utilizado para fazer urbanização de favelas ou eletrificação de frotas de veículos, vemos que é.”
Segundo Peres, entre janeiro e julho deste ano foram R$ 131,6 milhões para eletrificação de frota de veículos do sistema de transporte coletivo, R$ 117 milhões para urbanização de favelas, R$ 91 milhões para construção de unidades habitacionais.
“Quando comparamos esses valores da área de habitação e da própria área de transporte, esses R$ 297 milhões não são pouca coisa”, diz Peres, que foi secretária adjunta de Planejamento, Orçamento e Gestão no município de São Paulo, em 2013, e assessora geral do Orçamento na Secretaria de Finanças do município de São Paulo entre 2002 e 2003.
O mesmo vale quando se olha para outras áreas da prefeitura, diz, ao lembrar que a Secretaria de Municipal de Direitos Humanos e Cidadania tem orçamento anual de R$ 202,1 milhões, a de Desenvolvimento Econômico, Trabalho e Turismo, de R$ 228 milhões, e a da Esportes e Lazer, R$ 365,9 milhões. O da subprefeitura da Sé, a maior de São Paulo, é de R$ 126,7 milhões.
“Tudo é uma questão de opção”, diz. “E a grande questão que fica é: quem são os beneficiados por essa política? Se forem as pessoas que mais precisam e que, com isso, conseguem aumentar suas possibilidades de lazer, talvez faça sentido. Mas, se forem pessoas que poderiam pagar pela tarifa, talvez seja mais importante utilizar esses recursos [do Tarifa Zero] para aumentar a urbanização de favelas ou o orçamento da Secretaria de Direitos Humanos.”
Concorrência pelo dinheiro
Mariana Almeida, diretora-executiva da Fundação Tide Setubal e professora do Centro de Gestão e Políticas Públicas do Insper, lembra que a gestão orçamentária implica tomar decisões sobre recursos finitos e alocação.
“O Tarifa Zero, portanto, acaba concorrendo com equipes de saúde da família, por exemplo, obras de drenagem, ampliação de vagas de creche”, diz.
Além da alta do número de passageiros transportados, o Tarifa Zero levou a uma frequência maior nos parques municipais. Dados da Secretaria do Verde e Meio Ambiente do município mostram crescimento de 177% das visitas, entre dezembro de 2022 a maio de 2023. Dentre os parques que receberam mais visitantes estão o do Carmo, Tiquatira, Fazenda do Carmo e Bororé.
Apesar de ter impulsionado o fluxo de passageiros, especialistas têm dúvidas sobre o efeito compensatório do programa em termos de geração de mais atividade econômica aos domingos.
“Algumas pessoas podem estar optando por se locomover mais e gastar menos. Com isso, sobra um pouco mais de renda para gastar em outras coisas, mas não a ponto de alimentar uma geração importante de atividade [em setores como serviços] e novos empregos”, afirma Imaizumi.
Peres argumenta que a isenção da tarifa de ônibus aos domingos não é garantia de mais consumo, pois isso depende de quem utiliza o transporte gratuito.
“É difícil fazer essa atribuição direta sem saber o público [que é beneficiado pela medida]. Se esse ônibus está sendo utilizado por quem não tem recurso para consumir, então, não há essa garantia”, diz. “Pode ser que esteja atingindo não quem mais precisa, mas quem tem mais recursos e que acabará, portanto, consumindo mais.”
Almeida observa que pessoas mais pobres que não iriam ao parque sem a gratuidade da tarifa aos domingos tendem a ter renda pouco elástica para o consumo, o que coloca em xeque a possibilidade do programa de aumentar a demanda por serviços e, consequentemente, gerar mais atividade.